O SUJEITO DA LITURGIA

O SUJEITO DA LITURGIA

 

Fr. Luis Felipe Marques, OFMConv. 

 

A reflexão que se segue dá continuidade ao artigo anteriormente publicado neste site da Associação dos Liturgistas do Brasil. No texto precedente, o Padre Márcio Pimentel abordou a LITURGIA COMO SUJEITO da renovação da vida cristã, sublinhando a necessidade de superar uma lógica meramente reformista para avançar rumo a uma autêntica renovação. Agora, conforme havíamos combinado, retomo e aprofundo a questão do SUJEITO DA LITURGIA, desenvolvendo-a em continuidade com aquela reflexão inicial.

A liturgia, de fato, deve ser capaz de plasmar nos batizados a vida divina, a vida no Espírito e a vida em Cristo, deixando de ser compreendida apenas como um design que modela práticas ou como simples objeto de estudo. Na celebração ritual da fé, o batizado, incorporado na comunhão do Ressuscitado e inserido na comunidade cristã, é iniciado no estilo novo de vida segundo o Espírito e cresce, ao mesmo tempo, no conhecimento teológico da própria liturgia.[i]

A eclesiologia conciliar e pós-conciliar recuperou, no coração da Igreja, a índole comunional do Povo de Deus (LG 9), Corpo de Cristo (LG 7–8), Esposa de Cristo (LG 6) e mistério sacramental (LG 1). A partir dessa compreensão renovada, afirmou-se com clareza que o Povo de Deus é o verdadeiro sujeito da ação litúrgica sacramental. Por isso, após o Concílio, nenhuma celebração admite a presença de “espectadores” (cf. SC 48): toda a assembleia participa como sujeito integral do agir litúrgico, pois todo o Povo de Deus é, de modo próprio, concelebrante. Os diversos ministérios, desde o indispensável ministério da presidência até os mais simples e discretos, existem para servir à plena expressão do sacerdócio comum dos fiéis e à edificação da assembleia celebrante.

Nesse sentido, como recorda Pe. Márcio, não é liturgicamente legítima, ainda que válida, uma celebração que careça da autenticidade da comunidade dos crentes. Com efeito, a primeira condição para que a Eucaristia aconteça é a assembleia reunida. Eis a grande mudança de perspectiva introduzida pelo Concílio: não basta que o presbítero esteja devidamente preparado; é indispensável que a assembleia, sujeito litúrgico em Cristo, esteja realmente congregada e consciente de se reunir no amor do Senhor. Assim compreendida, a participação ativa deixa de ser um simples slogan da reforma conciliar, ou um recurso retórico de teólogos da liturgia, para se revelar como expressão da genuína e própria natureza da celebração eclesial.

Conscientes de que o núcleo da ação litúrgica é o Mistério Pascal, é necessário reconhecer que o sujeito dessa mesma ação é a assembleia dos fiéis, articulada na diversidade de seus ministérios. Como ensina o Concílio, “as ações litúrgicas não são ações privadas, mas celebrações da Igreja, que é sacramento de unidade, isto é, povo santo reunido e ordenado sob a direção dos bispos” (SC 26). Assim, o próprio ato de constituir-se Povo de Deus é já um ato eucarístico: é expressão de ação de graças. A liturgia arranca-nos de um conhecimento individualizado e fragmentado de Deus e nos conduz, como um único corpo, ao mistério revelado na Palavra e nos sinais sacramentais (cf. DD 19).

A assembleia litúrgica é a forma originária e fundamental da Igreja. É nela que a comunidade cristã torna visível a presença de Cristo, reconhece sua própria identidade, discerne o sentido de sua missão e compreende a tarefa que lhe cabe na história.[ii] À luz disso, a eclesiologia eucarística da Sacrosanctum Concilium afirma que a principal manifestação da Igreja se realiza na participação plena, consciente e ativa de todo o povo de Deus (cf. SC 14).

Foi exatamente para garantir ao povo cristão um acesso mais seguro e profundo à abundância de graça que a Liturgia contém que a Igreja se dedicou a uma reforma atenta e abrangente de sua ação litúrgica. Tal renovação buscou assegurar que os ritos expressassem com maior clareza as realidades sagradas que celebram e que, na medida do possível, ajudassem os fiéis a compreender mais plenamente o seu significado. Assim, todos são convocados a participar de modo mais pleno, consciente, ativo e autenticamente comunitário na celebração dos mistérios da fé (cf. SC 21).

É justamente o ato de constituir-se assembleia que cura divisões, fragmentações e polarizações. Na liturgia, a diversidade das pessoas, a disparidade das opiniões, as diferentes sensibilidades e a pluralidade das opções eclesiais encontram sua unidade na convergência dos gestos, nas ações rituais, na proclamação da palavras e nas disposições interiores. Essa “uniformidade litúrgica” não anula a singularidade, mas a purifica e a educa, orientando cada fiel a descobrir-se a partir da realidade de um só Corpo (cf. DD 51).

Tal reconhecimento do povo de Deus como verdadeiro sujeito litúrgico exige coragem para enfrentar as polarizações que hoje atravessam o modo de celebrar. De um lado, encontra-se um progressismo litúrgico que, por vezes, se deixa conduzir por uma criatividade desordenada ou por adaptações excessivamente moldadas aos gostos subjetivos das comunidades, diluindo o valor simbólico e sacramental da liturgia e reduzindo-a a um mero evento social. De outro lado, ganha força um tradicionalismo litúrgico que tende a absolutizar formas anteriores à reforma conciliar, como se apenas elas fossem expressão legítima da fé católica, ignorando o desenvolvimento orgânico da tradição e demonstrando desconhecimento da autêntica Tradição da Igreja. 

Paradoxalmente, aqueles que se apresentam como defensores da Tradição acabam, não raras vezes, opondo-se à própria dinâmica viva e fiel da Tradição eclesial. Infelizmente, muitos jovens, e também não poucos presbíteros jovens, tornam-se particularmente suscetíveis a essas polarizações quando carecem de formação sólida, desconhecem a história e ignoram a teologia da liturgia. A falta de referências seguras os torna vulneráveis a leituras superficiais ou ideológicas do vasto patrimônio litúrgico da Igreja. Além disso, a manutenção contínua do uso dos livros litúrgicos anteriores à reforma, sem a perspectiva clara de conduzir todos ao único rito atualmente vigente, acaba por negar o caminho que a Igreja percorreu e por colocar em questão a ação do Espírito que a reúne e sustenta na unidade do mesmo Corpo.[iii]

Ambos os extremos representam respostas ideologizadas que empobrecem a inteligência da fé litúrgica. Progressismo e tradicionalismo compartilham a mesma limitação: ao instrumentalizarem a liturgia, substituem sua dimensão mistagógica por projetos particulares, seja em nome de uma inovação sem critérios, seja em nome de uma preservação rígida e anacrônica de alguns conteúdos estéticos. A liturgia não pode converter-se em campo de disputas, nem reduzir-se a espetáculo vazio ou a mero refúgio estético (cf. DD 16). Ela não se submete aos gostos pessoais nem às agendas particulares: é expressão viva da fé da Igreja, lugar de comunhão, de beleza e de graça.

Efetivamente, se os cristãos fossem, em sua maioria, ajudados a compreender que a finalidade da Eucaristia é fazê-los um só Corpo, uma verdadeira comunhão de irmãos e irmãs na fé, perceberiam com maior clareza que a participação na assembleia litúrgica dominical não é simplesmente uma questão de preceito ou de observância,[iv] mas de identidade: trata-se daquilo que cada fiel é chamado a ser como crente e daquilo que implica afirmar-se como tal. A assembleia é o lugar onde o Espírito Santo atua com fecundidade; é a epifania dos dons que o Espírito concede à Igreja. Ninguém ali pode se comportar como mero espectador, mas participante ativo, professando uma fé que se traduz na vida concreta da comunidade cristã no mundo.[v]

Na celebração eucarística, os fiéis revelam aquilo que são pelo Batismo: povo santo, povo adquirido, sacerdócio régio, convocado para dar graças a Deus e para oferecer o sacrifício de louvor perfeito, não apenas pelas mãos do sacerdote, mas também juntamente com ele, aprendendo, assim, a oferecer-se a si mesmos e a acolher o perdão das faltas, a segurança para a vida e a salvação que esperam (cf. Oração Eucarística I). Por isso, a comunhão eucarística é sempre fruto de um duplo dom do Espírito: o Espírito que desce sobre os dons do pão e do vinho, configurando-os ao Corpo e Sangue de Cristo, e o Espírito que desce sobre os celebrantes, reunindo-os e unificando-os em um só Corpo (cf. Oração Eucarística II).[vi]

Enfim, para evidenciar a força constitutiva da comunidade, basta recordar os discípulos de Emaús. Eles reconheceram simultaneamente o Senhor vivo na fração do pão e a sua presença interior, que lhes inflamou o coração ao ouvirem uma palavra capaz de consolar e iluminar. Contudo, a alegria só se tornou plena quando retornaram à comunidade e ali descobriram que também os outros, por caminhos diferentes, haviam feito a mesma experiência do Ressuscitado.

 



[i] Pimentel, Márcio. A liturgia como sujeito. Disponível em: https://www.asli.com.br/artigos/a-liturgia-como-sujeito

[ii] Boselli, Goffredo. O sentido espiritual da Liturgia. Brasília: Ed. CNBB, 2016, p. 101. 

[iii] Pimentel, Márcio. A ruptura entre forma litúrgica e modelo eclesial. Disponível em: https://www.asli.com.br/artigos/a-ruptura-entre-forma-liturgica-e-modelo-eclesial

[iv] Marques, Luis. Para acolher com alegria, na liturgia e na vida, os preceitos do Senhor. Disponível em: https://www.asli.com.br/artigos/para-acolher-com-alegria-na-liturgia-e-na-vida-os-preceitos-do-senhor

[v] Boselli, Goffredo. O sentido espiritual da Liturgia. Brasília: Ed. CNBB, 2016, p. 117. 

[vi] Marques, Luis. A Mistagogia da Missa. Petropólis: Vozes, 2023, p. 174.


 
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