A RUPTURA ENTRE FORMA LITÚRGICA E MODELO ECLESIAL

A RUPTURA ENTRE FORMA LITÚRGICA E MODELO ECLESIAL

 

Pe. Márcio Pimentel

 

No dia 25 de outubro, na Cidade do Vaticano, o Cardeal Burke celebrou com o rito romano pré-conciliar, conforme o Missal de 1962 - rito que, por determinação pontifícia, não deve mais ser designado como “forma extraordinária” -, com autorização especial do Papa Leão XIV. A celebração inseriu-se no contexto eclesial do Jubileu da Esperança e integrou as comemorações da peregrinação Summorum Pontificum. No dia seguinte, 26 de outubro, o Papa Leão XIV presidiu a Eucaristia no único rito atualmente vigente, aquele reformado em obediência às determinações do Concílio Vaticano II, marcando o encerramento da peregrinação das equipes sinodais e dos órgãos de participação.

Vale a pena destacar o trecho inicial da homilia do Papa Leão, como chave hermenêutica muito apropriada, para ler o que poderia ser chamado “oxímoro eclesial”, no caso, literalmente “de um dia para o outro”, a aparente convivência de duas experiências de Igreja extremamente contrastantes, mas cuja antinomia não produz qualquer possibilidade de síntese, mas simplesmente obstáculo de uma à outra. Leão assim se expressa no início de sua pregação: 

ao celebrarmos o Jubileu das equipas sinodais e dos órgãos de participação, somos convidados a contemplar e redescobrir o mistério da Igreja, que não é uma simples instituição religiosa nem se identifica com as hierarquias e as suas estruturas. Pelo contrário, a Igreja, como nos recordou o Concílio Vaticano II, é o sinal visível da união entre Deus e a humanidade, do seu projeto de nos reunir a todos numa única família de irmãos e irmãs e de nos tornar o seu povo: um povo de filhos amados, todos unidos no único abraço do seu amor[1].

         O pontífice é muito enfático em evidenciar que o tema da sinodalidade reflete a natureza da Igreja, de ser mistério de comunhão, dirá em continuação, que não se identifica com a institucionalidade, mas com uma rede de relações familiares, pautada na espiritualidade filial, constitutiva da vida de quem tornou-se discípulo e discípula de Jesus. Esse modo de pensar, segundo o Papa, é proveniente do Concílio Vaticano II, não em sua origem, mas como evento que se ocupou de “refontalizar” a Igreja em todos os seus aspectos, pautando princípios e estabelecendo normas no que foi operacionalizado como um grande projeto de reforma.

         Como outrora afirmou Francisco, ainda nos momentos iniciais de seu pontificado, se houve um aspecto da vida eclesial que melhor expressou o espírito transformador do Concílio, esse não foi outro que a Liturgia. Em suas palavras, 

O Concílio Vaticano II foi uma releitura do Evangelho à luz da cultura contemporânea. Ele produziu um movimento de renovação que procede unicamente do próprio Evangelho. Os frutos são imensos. Basta recordar a liturgia. O trabalho da reforma litúrgica foi um serviço ao povo, entendido como uma releitura do Evangelho a partir de uma situação histórica concreta.[2].

E isso deveu-se a um fato muito simples, é a celebração dos mistérios que dá forma à Igreja, algo que Tomás de Aquino soube explicitar em sua Summa Theologiae, ao discutir a instituição e finalidade dos sacramentos[3]. Deste modo, rito e Igreja são duas faces da mesma moeda, não havendo moeda sem quaisquer destas faces.

         Dom Cipriano Vagaggini já havia assinalado que “do ponto de vista teológico, o plano de fundo eclesiológico é determinante seja nas diretivas que o Vaticano II deu para a reforma da liturgia, seja na realização desta mesma reforma”[4]. De fato, a Constituição litúrgica se abre expressando o escopo eclesiológico da celebração cristã, dizendo que a Liturgia “contribui em sumo grau para que os fiéis exprimam na vida e manifestem aos outros o mistério de Cristo e a autêntica natureza da verdadeira Igreja”[5]. Assim, não se pode compreender a reforma litúrgica sem considerá-la em sua relação estreita com seu sujeito que é a Igreja. O mistério que nossos olhos contemplam e nossas mãos apalpam na Liturgia é o mistério do Corpo do Verbo de Deus, que é a Igreja.

         Em outras palavras, a decisão por estipular a necessidade de uma revisão geral dos livros litúrgicos, procedendo com uma ampla e irrestrita reforma dos ritos não se sustenta legitimamente senão dentro do compromisso permanente de busca de fidelidade da Igreja ao Evangelho de Cristo, de seu sinal mais eficaz e efetivo. A forma ritual em vigor até o Concílio não era mais capaz de engendrar o modelo eclesial necessário, de modo que a Igreja permanecesse significativa no mundo contemporâneo. A ordem de reforma vem, sem rodeios, fundamentada nessa premissa, explícita no primeiro número da Constituição: “fomentar a vida cristã entre os fiéis, adaptar melhor às necessidades do nosso tempo as instituições susceptíveis de mudança, promover tudo o que pode ajudar à união de todos os crentes em Cristo, e fortalecer o que pode contribuir para chamar a todos ao seio da Igreja.”

         As reações iniciais à reforma litúrgica, dentre as quais a mais famosa e contundente foi a do bispo Marcel Lefebvre, não eram apenas apego ao que se chamaria à época, a forma exterior dos sacramentos, que seria menos tradicional, portadoras de ambiguidades ou defeitos doutrinais ou pobreza estética. O que o bispo francês e seus asseclas não conseguiam tolerar era o modelo de Igreja que despontava. A rigidez litúrgica é sintoma de uma questão profunda e ampla. Sabendo que o Concílio é vinculante para a fé, não aceitar quaisquer de suas decisões implica (como ocorreu) em cisma. Foi a essa ferida que João Paulo II tentou oferecer “tratamento”, com o indulto para o uso da forma preconciliar (Missal de 1962) em 1984[6], renovado em 1988, para quem tinha dificuldades com a reforma litúrgica conciliar. 

Esse indulto foi alargado de maneira tal a permitir que os livros litúrgicos não reformados fossem empregados como modo extraordinário de ser cristão católico-romano com o Motu Proprio Summorum Pontificum e a instrução Universa Ecclesia que subtraiu das Conferências Episcopais e dos Bispos locais a gestão da vida litúrgico-sacramental dos fiéis, já que os casos em torno da chamada missa tridentina e todo o mais relativo à forma ritual anterior à reforma litúrgica, deveriam ser tratados diretamente com a Comissão Ecclesia Dei. Já aí, se nota como uma querela aparentemente apenas litúrgica toca a existência concreta da Igreja. 

O embate durou até que o Papa Francisco promulgou Traditiones Custodes, chamando toda a Igreja à consciência de que para os fiéis católico-romanos, a lex orandi reside na forma ritual em uso, por ordem da Santa Sé, fruto da reforma litúrgica ordenada expressamente por um Concílio Ecumênico.

         Dito isso, insistir num uso ritual que não possui o escopo – e agora se pode dizer, sessenta anos depois – o lastro eclesiológico querido pelo Concílio Vaticano II, revisto e fortalecido nos diversos movimentos da Igreja universal em vista de mantê-lo vivo, dentre eles o mais recente compromisso com a sinodalidade, parece um ato de desobediência mais flagrante ainda. Não uma desobediência institucional, porque a questão está sendo gerida por quem de direito – a própria celebração na basílica de São Pedro teve a autorização de Leão XIV. Mas talvez seja uma desobediência ao destino que o Espírito Santo vem forjando na Igreja, refletido nas muitas decisões e encaminhamentos ligados às urgentes pautas que o hoje da história recente propõe aos discípulos de Cristo:  as relações ecumênicas e interreligiosas que afetam diretamente o reconhecimento político e o direito dos povos (veja-se o direito à existência de um estado palestino), a preocupação ecológica e com a pobreza no mundo, também como  migrantes,  os princípios, normas e estruturas de governo da própria Igreja em perspectiva colegiada e participativa para dizer algumas. Todas essas pautas são variantes da concretude do único amor a que somos chamados obedecer, o amor de Cristo. A forma ritual anterior ao Concílio não é capaz de gerar um corpo eclesial capaz de relações desse porte e por isso ela foi re-formada, isto é, reestruturada com base no princípio da sã tradição e do legítimo progresso. 

         Há ainda a questão mais propriamente litúrgica, conectada à requerida participação de todos os fiéis no Mistério de Cristo mediante os ritos e preces da Igreja, lida hoje como verdadeira arte de celebrar. Não há lugar para isso no Ordo de 1962, que mesmo tendo recebido as reformas de Pio XII e João XXIII, esperava as determinações do Concílio. Um missal de transição, portanto, que ainda respirava em sua estrutura o clima curial do século XV e, portanto, carente de oportunidades reais para que todos comparecem congregados praticando um só ato de culto, respeitadas evidentemente as condições concretas de cada assembleia em termos de formação e de vocação. 

É preciso reforçar com veemência que a convivência de duas formas rituais, sendo uma a reforma da outra não contribui para que a Igreja seja una, pois respondem a modelos eclesiológicos diferentes e refletem cosmovisões não conciliáveis. Sobre isso, recentemente escreveu Robert Mickens:

O triste fato é que não deveria haver – nem jamais deveria ter havido – um debate sobre o uso contínuo do Rito Tridentino na era pós-Vaticano II. Um concílio ecumênico, que (em conjunto com o Romano Pontífice) é a autoridade máxima da Igreja em questões de fé e moral, decidiu resolutamente que a liturgia precisava ser reformada.

Uma maioria esmagadora de bispos presentes no Concílio Vaticano II (1962-1965) aprovou os princípios gerais que norteariam as reformas (apenas quatro votaram contra). Então, um papa legitimamente eleito – Paulo VI – supervisionou pessoalmente, passo a passo, como essas reformas seriam implementadas.

Nunca foi intenção do Concílio ou do Papa Paulo permitir que a liturgia tridentina continuasse paralelamente à do rito reformado. Pelo contrário, Paulo estava convencido de que isso só causaria sérios problemas na Igreja e permitiria que a oposição ao rito reformado se tornasse um pretexto para contestar outras reformas propostas pelo Vaticano II, e até mesmo pelo próprio Concílio[7].

 

Aquilo que o Papa Leão afirma, de reunirmo-nos como Igreja, comunidade discipular, todos juntos como uma única família de irmãos e irmãs, envolvidos pelo abraço amoroso do Pai em Cristo, exige um rito do qual todos tomemos parte e esta realidade mistérica se torne carne. Certamente não é o rito não-reformado que permitirá tal abraço, mas o único rito que a Igreja conhece como seu nos dias de hoje, aquele oriundo da reforma geral e irrestrita ordenada por um Concílio Ecumênico, em que dois Pontífices legitimamente eleitos se encarregaram de encaminhar, São Paulo VI e São João Paulo II. 

Continuar a dar lugar e oportunidade para que se celebre com os livros litúrgicos não-reformados, fora do escopo de a seu tempo levar todos à comunhão no único rito em vigor – como estratégia de paciência, diálogo e misericórdia, conforme o Papa Francisco alude em Traditiones custodes - equivale a negar a história, a legitimidade dos passos dados pela Igreja e, no final das contas, atentar contra própria assistência do Espírito que nos une num só corpo em seu amor.



[1] Leão XIV, Homilia na missa do Jubileu das Equipes Sinodais e Órgãos de Participação, 26 de outubro de 2025. Disponível em: https://www.vatican.va/content/leo-xiv/pt/homilies/2025/documents/20251026-giubileo-equipe-sinodali.html

[2] Antonio Spadaro, Intervista a Papa FrancescoLa Civiltà Cattolica, 2013, vol. III,  quaderno 3918 (19 settembre 2013), p. 467.

[3] STh. III, 64, 2c.

[4] C. Vagaggini, «Ecclesiologia di comunione e riforma liturgica», in Liturgia, opera divina e umana. Studi sulla riforma liturgic offerti a S. E. Mons. Annibale Bugnini in occasione del suo 70º cimoelanno, ed., P. Jounel-R. Kczynski-G. Pasquletti, Roma: CLV-Edizioni Liturgiche 1982, 61.

[5] SC 2.

[6] Interessante, que essa disposição de conceder possibilidade controlada de uso do Missal anterior à reforma, ia na direção oposta ao que a maioria do episcopado católico havia requerido em 1980 numa pesquisa realizada pela Congregação para o Culto Divino, atestando que a forma “tridentina” tinha sido superada e que não se devia abrir a possibilidade de reintroduzi-lo. É importante, também, saber que o Cardeal Ratzinger, à época trabalhou exatamente na direção de ampliar o uso, ao que João Paulo II renunciou em 1988.

[7] R. Mickens, «O papa Leão deve resistir às tentativas de chantagem dos católicos do Rito Antigo», Disponível em: https://ihu.unisinos.br/categorias/654461-o-papa-leao-deve-resistir-as-taticas-de-chantagem-dos-catolicos-do-rito-antigo-artigo-de-robert-mickens

 
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