A LITURGIA COMO SUJEITO
Pe. Márcio Pimentel
Em 2015 por ocasião das comemorações de 50 anos do Pontifício Instituto Litúrgico em Roma, o então Papa Bento XV em 2011, pronunciava-se sobre a necessidade de empreender no percurso formativo oferecido na instituição uma nova sensibilidade pela qual a liturgia devesse passar, aos olhos dos pastores e especialistas, “de objeto a se reformar a sujeito capaz de renovar a vida cristã”.
Na verdade, essa legítima e necessária reivindicação não é bem uma novidade. A própria Constituição litúrgica incide sobre a questão, propõe a reforma e o incremento da Liturgia como contribuição no fomento da vida cristã entre os fiéis. Daí deduz-se o grande princípio da participação de todos o povo de Deus, que deveria nortear a revisão geral de todos os livros litúrgicos, trabalho complexo e exigente, visando reordenar a vasta tradição celebrativa da Igreja latina face à concreta realidade e situação homem e mulher contemporâneos, chamados a ser membros da Igreja. O desafio era de repropor a participação na Liturgia, momento de maior expressividade da presença e atuação Cristo no Corpo da Igreja (cume) como a mais genuína, potente e eficaz fonte do espírito cristão. Per ritus et preces, então, disponibilizar mais abundantemente o acesso aos tesouros da fé, que já há alguns séculos estava concentrado na mão do clero.
Com isso, se entendia como uma urgência, devolver à celebração sua natural competência formativa ou – mais evangelicamente se pode dizer – pastoral. A forma ritual deveria ser, de novo, capaz de formar nos fiéis a vida divina, a vida no Espírito, a vida em Cristo1 . Os objetivos do Concílio de “aggiornare" a Igreja, de mergulhá-la no “hoje" de Deus e permitir que todos os seus membros o percebessem atuante no “hoje" do mundo, exigia partir daquilo que lhe é originante, isto é, a oração litúrgica. Deste modo, a primeira instrução para a aplicação de Sacrosanctum Concilium, dispôs claramente que a reforma dos ritos tinha por escopo recuperar para os fiéis o dinamismo pastoral da Liturgia de modo que, ao celebrarem-se os mistérios os seus participantes fossem formados.
Evidentemente é necessário pensar a formação não apenas como processo educativo e, menos ainda, a transmissão de conhecimentos “sobre” Deus, a revelação, a Igreja etc. Formar, do latim instituere, implica fundar uma realidade, estabelecê-la em seus fundamentos e só depois significa ensinar um determinado conteúdo – religioso, teológico, espiritual. Assim, quando se diz que a Liturgia é sujeito na formação da Igreja, quer-se dizer tanto que ela confere um design e modela a vida cristã, plasmando a vida comunitário-eclesial como também que a Liturgia é mestra antes de ser uma disciplina, uma “matéria” ou “assunto” sobre o qual se deter.
Sobre o primeiro aspecto, vem à tona a relação intrínseca entre rito e Igreja, ou seja, o estatuto eclesiológico da prática celebrativa. Não é legítima (embora se possa dizer em muitos casos “válida”) uma celebração que careça da autenticidade da comunidade dos crentes. Pense-se, por exemplo, nos tantos batismos e matrimônios que não contam com a efetiva presença de uma verdadeira comunidade eclesial. Isso é, por assim dizer, um vício que ainda hoje custa ser superado. Mas, ainda nesses casos o endereçamento do sacramento é sempre a comunidade de fé. Batiza-se para que alguém seja enxertado como membro no Corpo de Cristo que é a Igreja; casa-se “na Igreja” para que a vida dos cônjuges e a família que dali espera-se nascer enriqueça a comunidade dos fiéis, contribuindo para que ela cresça e se fortaleça. Quando se celebra um rito, portanto, temos sempre a epifania da Igreja, ainda que nos contentemos com o “mínimo necessário”, nos termos de Grillo.
Mas a Liturgia também dá a conhecer o Mistério de Cristo e desponta, então, como oportunidade de formação permanente dos fiéis. É interessante recordar como, desde a fase ante-preparatória e muito especialmente na fase preparatória a homilia foi solicitada como ocasião singular e indispensável para a educação dos fiéis. Assim, chegou-se a feliz explicitação de que ela, como parte da ação litúrgica, ou seja, como rito, tem por finalidade explicitar os mistérios da fé e estabelecer as normas da vida cristã, tendo em vista o dinamismo do ano litúrgico. O detalhe importante, é que a homilia não deveria simplesmente ter como ponto de partida o Lecionário, mas também o Sacramentário, ou seja, não só os textos de origem escriturística, mas também a eucologia, os gestos e demais elementos que concorrem no tecido que é o Ordo. Mas, claro, que não é apenas o rito homilético que forma, mas a celebração como um todo faz conhecer o Evangelho de modo próprio, que está estritamente conectado à sua condição linguística de ser “símbolo” e de ser uma ação que transporta, transforma e modifica as pessoas em seu modo de pensar, sentir e agir.
Daqui emerge uma discussão mais ampla e fascinante, que é sobre o que Paul De Clerck chamou “inteligência da liturgia” numa de suas obras mais conhecidas. Embora o autor comece por privilegiar aquilo que se é chamado a conhecer “sobre” a liturgia, logo nas primeiras páginas de sua obra desloca o sentido, evidenciando que a liturgia corresponde a um tipo de inteligência, a uma maneira de “ler” o que se dá “entre” nós, intervindo sobre as relações que estabelecemos com o ambiente, as pessoas, os objetos, o tempo e o espaço, providenciando a cognição daquele que, nos termos da anáfora IV, habita uma luz inacessível. Dom Jerônimo chamará esta inteligência de intellectus ritus, pelo que toma-se o “fenômeno litúrgico, o dar-se ritual como paradigma” (...). Nesse caso, o rito se apresenta com um meio para a transmissão da visão cristã de Deus, do homem, da Igreja e do mundo, de tal modo que, examinando o que é próprio da liturgia (ritus et preces), podem-se descobrir ulteriores elementos teológicos da vida cristã”2 .
Em suma, tomar a liturgia como sujeito equivale a recuperar sua qualidade eminentemente mistagógica, iniciática, por cujo dinamismo sacramental “a pessoa vai sendo incorporada a essa experiência de comunhão com o Ressuscitado e de vida nova no Espírito”3 . Como concluirá Danilo César, comentando a teologia de corte mistagógico de Buyst, podemos dizer que a Liturgia se faça sujeito quando “assume a história humana e a entrelaça na História da Salvação e no modo como Deus conduz a história”4 . É nesse itinerário, que conhece a Deus e aos irmãos, vendo o mundo que compartilham como lar, “nossa casa comum”. Por fim, pensar a liturgia como sujeito exige reconhecê-la como revelação com a qual a assembleia celebrante enxerga e lê a vida pela ótica do rito5.
[1] Cf. I. Buyst-J.A. da Silva, O Mistério Celebrado: memória e compromisso I, Valencia: Siquem Ediziones 2002, p. 20.
[2] J. Pereira, A liturgia nos faz Igreja. Ensaios de teologia litúrgica. Aparecida: Editora Santuário-ASLI 2025, 15.
[3] M.Barros-P. Carpanedo, Tempo para amar. Mística para viver o ano litúrgico. São Paulo: Paulus 1997, 17.
[4] D. C. Dos Santos Lima, «A corda de Raab: a mistagogia na teologia de Ione Buyst», in P. Carpanedo-M. Pimentel (org.), Ione Buyst: uma vida a serviço da liturgia. São Paulo: Apostolado Liturgico-Paulinas-Paulus-Loyola 2025, p. 126.
[5] Cf. G. Bonaccorso, Il rito, Padova: EMP 2015, p. 6.
