O advento: um tempo curioso
I – Um tempo “novo”
O Advento, o Tempo litúrgico que agora está começando, é um tempo bem cheio de curiosidades. Já o seu nome tem alguma coisa de excêntrico.
Advento, como talvez todos saibam, é uma palavra latina, Adventus, que significa vinda ou chegada. O que talvez nem todos saibam — e saber isso nos ajuda a entender melhor o significado dessa palavra na linguagem litúrgica/espiritual — é que a palavra Adventus é a versão latina não de uma, mas de duas palavras gregas: παρουσία(parusia) e ἐπιϕάνεια (epifania).
O significado de ambas as palavras está relacionado, mas elas não são totalmente sinônimas. Para os antigos pagãos da era apostólica — cuja língua comum era o grego — o termo epifania era usado para designar a entrada solene, a aparição pública, por assim dizer, do imperador quando ele visitava as cidades de seu império; a palavra parusia, por sua vez, servia para designar a presença do imperador, cercado por sua comitiva, diante do povo. Os cristãos, portanto, não apenas adotaram ambos os termos da linguagem popular, mas também os adaptaram à nova realidade evangélica. Naturalmente, começaram a falar da parusia do Verbo de Deus que se fez presente na humanidade e habitou entre nós (João 1:14) e da epifania do Filho de Deus que, feito carne, manifestou visivelmente a presença do Deus invisível. De modo tal que parusia (entrada) e epifania (presença “majestosa”)Adventus na versão latina — passaram, assim, a significar no mundo cristão — e continuam a significar na nossa liturgia — tanto a vinda ou visitação do Senhor como a sua presença entre nós, o seu povo. É um pouco “diferente” esperar o que já está o que já está presente.
Primeira curiosidade: O Advento é um tempo “novo”
A introdução do Advento no ano litúrgico romano ocorreu relativamente tarde. Até a primeira metade do século VI, não há registro de um período do ano litúrgico chamado “Advento” ou que utilizasse terminologia semelhante, nem há evidências de uma liturgia com uma clara marca do tipo. Na Gália e na Espanha, a situação eradiferente, pois a introdução do Advento já é atestada no século IV. Nessas regiões, a festa da Epifania (6 de janeiro) era celebrada como a principal festa do nascimento de Cristo; essa festa também era também destinada à celebração dos batismos. Por analogia à Quaresma, que, na tradição romana, precedia o batismo na noite de Páscoa, essa data era precedida por um período de várias semanas de preparação mistagógica de natureza penitencial. O atestam Santo Hilário de Poitiers († 367), o cânon IV do Concilio de Saragoça, celebrado no ano de 380 e, mais tarde, o bispo Perpetuo de Tours (†490) que falam de três semanas de preparação para a Epifania e de jejum três vezes na semana, começão no dia de São Martinho (11 de novembro). Na liturgia, esse tempo era particularmente caracterizado por temas escatológicos; consequentemente, o foco da expectativa do Advento era a segunda vinda de Cristo no fim dos tempos.
Em Roma, as coisas se desenvolveram de maneira diferente. Roma é certamente o lugar onde a festa do Natal foi celebrada pela primeira vez em todo o mundo cristão, em 25 de dezembro de 336. Nesse contexto, a introdução tardia do Advento em Roma pode ser surpreendente. Uma das razões para isso provavelmente reside na diferente orientação teológica, litúrgica e espiritual de Roma, em contraste com a da Gália e da Espanha. Ao contrário destas últimas, desde o início Roma celebrava a principal festa do nascimento de Cristo em 25 de dezembro, e não em 6 de janeiro. A atenção romana não estava voltada principalmente para 6 de janeiro, como data para os batismos em conjunto com a festa da Epifania, mas sim para a festa de 25 de dezembro. Por essa razão, provavelmente não havia necessidade de um período de preparação mais ou menos longo antes dessa festa.
Essa diferente ponderação teológica das duas festas do nascimento de Cristo, em comparação com a Gália e a Espanha, deixou marcas claras em Roma, ainda perceptíveis quando, na segunda metade do século VI, o Advento foi introduzido também na Urbs — com particular atenção à data do batismo, 6 de janeiro. O foco da liturgia romana não era tanto o aspecto escatológico e seu caráter penitencial associado, mas sim a alegre expectativa da primeira vinda de Cristo e a preparação para o mistério de sua encarnação. O sinal mais claro da visão de Roma a respeito da posição e da importância do Advento é o fato de que, nas missas dos domingos do Advento na liturgia romana, o Aleluia com seu versículo, e não o Tractus, como na Quaresma, tem sido cantado, até os dias de hoje, como o canto que se segue à segunda leitura bíblica.
Uma prova de que o Advento é menos antigo que os outros ciclos litúrgicos é o fato de São Leão Magno (†460) e São Bento (†547) o desconhecerem. O Papa Leão, o famoso pregador dos mistérios do ano litúrgico, tem sermões para o Natal, Epifania, Quaresma, Páscoa, Pentecostes e até mesmo para as principais festas dos santos, masnunca menciona o Advento; esta é uma prova de que a celebração deste tempo litúrgico é posterior à sua época. O mesmo se diga de São Bento que organiza a vida monástica de acordo com a liturgia e distribui o Saltério a partir do ano litúrgico, ignorando completamente o ciclo das manifestações. Mesmo os antigos Sacramentários, por suavez, não iniciam o ano litúrgico com o Advento, mas com as celebrações do Natal. O Sacramentário Gregoriano (séculos VI-VII) é um dos primeiros códices a já conteralgumas alusões ao Advento: algumas orações para este ciclo, porém, não são colocadas no início do ano, mas quase como um apêndice ao final do ciclo (cf. Gr. 1699-1709). Estas são certamente as primeiras tentativas de organizar um tempo litúrgico que, pelo menos originalmente, estava orientado para a conclusão do ciclo litúrgico que narra a história da salvação desde o nascimento de Cristo até a sua vinda – o seu Advento – no fim dos tempos.
Embora o Advento na liturgia romana tenha tido, desde o início, um caráter de alegre expectativa, isso não significa que o aspecto escatológico estivesse completamente ausente em Roma. Especialmente a partir do século VIII, no decorrer do encontro e da fertilização cruzada entre a antiga liturgia galicana e a romana, o pensamento escatológico foi encontrando cada vez mais espaço também na liturgia romana do Advento. O resultado dessa fusão de duas tradições litúrgicas pode ser visto, entre outras coisas, no fato de que, na liturgia romana atual, especialmente na escolha dos textos para as leituras e os Evangelhos das Missas, a ênfase no primeiro e segundo domingos do Advento, e em parte também no terceiro, é colocada na escatologia, enquanto no quarto domingo do Advento, bem como em toda a semana que antecede o Natal, a ênfase é colocada na preparação para a festa do nascimento de Cristo em Belém (25 de dezembro).
Outros fatores e circunstâncias provavelmente contribuíram para a introdução tardia do Advento em Roma, especialmente o fato de que, em Roma, a celebração do Natal não era inicialmente considerada separada do Mistério Pascal, mas sim relacionada a ele, o que ressalta a posição central que a Páscoa ocupava no ano litúrgico desde o início. No período subsequente, surgiu um maior interesse pelo início da vida terrena de Cristo, devido a vários fatores, como as disputas sobre questões cristológicas que surgiram a partir do século IV e seus esclarecimentos em diversos concílios, o monaquismo que surgiu durante esse período e, não menos importante, a piedade popular da época. Consequentemente, a celebração do nascimento de Cristo passou a ser cada vez mais enfatizada por si só. Tudo isso, juntamente com a data do batismo em 6 de janeiro, foi a base para que o Natal também passasse a ter um período de preparação mais longo, chamado, curiosamente, de Advento.
Para aprofundar:
Adam A., O ano litúrgico: Sua história e seu significado segundo a renovação litúrgica, Loyola, São Paulo 2019.
Augé M., Ano litúrgico: É o próprio Cristo presente na sua igreja, Paulinas, São Paulo 2019.
Dom Jerônimo Pereira, osb
Presidente da ASLI
