Exaudi nos & Quaesumus, omnipotens Deus
As orações Sobre as oferendas e Depois da comunhão
V Domingo da Quaresma
I Parte
Exaudi nos
Observemos como se apresenta a Oração sobre as oferendas do V Domingo do Tempo da Quaresma na sua forma típica latina e a sua tradução portuguesa para o Brasil.
2008MR
Exaudi nos, omnipotens Deus, et famulos tuos, quos fidei christianae eruditionibus imbuisti, huius sacrificii tribuas operatione mundari.
2023MRB
Ouvi-nos, Deus todo-poderoso [onipotente], e concedei que vossos fiéis [servos], impregnados dos ensinamentos da fé cristã [a quem instruíste nos ensinamentos da fé cristã, sejam purificados pela ação deste sacrifício.
Discurso sobre as fontes
Para identificar “a história de vida” da nossa oração, os instrumentos são o primeiro ponto obrigatório de referência:
CO | Corpus Orationum, 2528. |
A Exaudi nos vem do Sacramentário Gelasianum Vetus, de tradição tipicamente presbiteral. Ela aparece pela primeira vez como Secreta (Sobre as oferendas) do V Domingo da Quaresma, precisamente para a celebração do terceiro escrutínio batismal (GeV 255: I, XVIII. [In Quadragesima], Quinta dominica, Quae pro scrutinio celebratur, Secreta). Aparece uma segunda vez no mesmo sacramentário, no formulario imediatamente a seguir: segunda-feira da V semana da Quaresma (GeV 260: I, XVIII. [In Quadragesima], Feria II, Ebdomada V, Secreta).
Do Gelasianum Vetus, tipicamente romano, a nossa oração passou ilesa para os Gelasianos galicanizados do século VIII, sendo utilizada unicamente para o terceiro escrutínio: Gell 491: LXXXIII (89). [In Quadragesima], [Missa quae pro scrutinio III celebratur] Ebd[omada] V, [Oratio]; Eng 511: LXXXVI. Missa quae pro scrutinio tertio in aurium apertione caelebratur, Secreta:
Exaudi nos, omnipotens Deus, et famulos tuos, quos fidei christianae primitiis imbuisti, in huius sacrificii tribuas operatione mundari. Per.
No desenvolvimento organizacional oficial dos livros litúrgicos, acontecido do século VIII em diante nos países franco-germânicos, a nossa oração não foi levada em consideração, encerrando nesse período a sua história de vida entre a Antiguidade e a Idade Média. Isso explica a razão pela qual a nossa oração não se encontrava no Missal moderno impresso em 1474 e, consequentemente, no tridentino (1570/1962).
Os compiladores a recuperaram diretamente da tradição gelasiana, restituindo-lhe o seu lugar de Oração Sobre as oferendas do V Domingo da Quaresma, mas não introduzindo-a no formulário próprio dos escrutínios (cf. 2023MRB, p. 965). A oração foi ligeiramente retocada/simplificada na sua última parte. Omitiu-se o “in” e substitui-se o talvez obscuro “primitiis” por “eruditionibus”.
Exaudi nos, omnipotens Deus, et famulos tuos, quos fidei christianae [primitiis] eruditionibus imbuisti, [in] huius sacrificii tribuas operatione mundari. Per.
= 1970MR p. 216: Dominica V in Quadragesima, Super oblata.
= 1975MR p. 216: Dominica V in Quadragesima, Super oblata.
= 2000/8MR p. 255: Dominica V in Quadragesima, Super oblata.
= 2023MRB p. 205: 50 Domingo da Quaresma, Sobre as oferendas.
Este último termo não é desconhecido na eucologia romana, como testemunha um Prefácio um tanto singular do Veronense, por alguns atribuído a São Leão Magno, no qual ambos os termos, “primitiae” e “eruditiones”, são encontrados juntos (cf. Ver 209: X, II. In ieiunio quarti mensis [Prex]).
Deve-se notar ainda que uma oração, aparentemente relacionada à nossa, estava em uso na Páscoa entre os livros da mesma família gelasiana:
Exaudi nos, omnipotens Deus, et familiae tuae corda, cui perfectam baptismi gratiam contulist, ad promerendam beatitudinem aptis aeternam.
= GeV 530: Incipiunt orationes paschales vespertinales, [Oratio].
= Aug 637: CXVI. Item alia orationes paschales, [Oratio].
Exaudi nos, omnipotens Deus, et familiae tuae [corda], cui perfectam...
= Gell 822: CXII (121). Item ali[ale or[ationes] paschalis ad vesperu[m] ad mat[utinum], Item, [Oratio]
= SGall 658: 108. Item aliae orationes paschales, [Oratio]
Exaudi nos, omnipotens Deus, et famulos tuos, corda cui perfectam...
= Eng 859: CXXVI. Item alias orationes paschales, [Oratio]:
Perspectivas teológicas
Ouvi-nos, Deus todo-poderoso [onipotente], e concedei que vossos fiéis [servos], impregnados dos ensinamentos da fé cristã [a quem instruíste nos ensinamentos da fé cristã, sejam purificados pela ação deste sacrifício.
Exaudi nos, omnipotens Deus, et famulos tuos, quos fidei christianae eruditionibus imbuisti, huius sacrificii tribuas operatione mundari.
A Exaudi nos começa com um grito imperativo (Escuta-nos). Esse grito ecoa todo o tempo da Quaresma: “Attende, Domine, et miserere”. É um gemido bíblico. Especialmente o salmista constantemente coloca na boca de Israel esse vagido, quase como um intercalar às palavras da oração: Sl 5,1: “Ouvi, Senhor, minhas palavras, escutai o meu gemido”; Sl 129,1: “Das profundezes eu clamo a ti, ó Senhor! Escutai, Senhor, a minha voz!”; Sl 142,1: “Ouvi, Senhor, a minha oração; pela vossa fidelidade, escutai a minha súplica, atendei-me em nome de vossa justiça”. Também a invocação que segue tem sabor bíblico. No Antigo Testamento é uma constante entre os pobres o reconhecimento da onipotência divina: Jó 37,23: Não podemos alcançar o onipotente. Ele é eminente em força e em equidade”; Jó 42,1-2: “Jó respondeu ao Senhor nestes termos: Sei que podes tudo e que nada te é impossível”. Essa afirmação de Jó encontra-se na boca do Arcanjo Gabriel ao apresentar à Bem-Aventurada Virgem Maria o projeto da encarnação do Eterno Verbo: “Para Deus, nada é impossível” (Lc 1,37). O Senhor mesmo afirmou essa verdade pela boca do profeta Jeremias: “Eu sou, em verdade, o Senhor... Haverá algo que me seja impossível?”. Finalmente, “A incomparável grandeza do seu poder [...] ele exerceu em Cristo, ressuscitando-o dos mortos e fazendo-o assentar-se à sua direita, nas regiões celestiais” (Ef 1,1-20). A esse ponto, tendo professado de forma tão eloquente a sua fé por meio da memória da onipotência daquele diante do qual se encontra, a Igreja ousa expressar a sua súplica.
Essa oração tem como ponto central o pedido da purificação que acontece por meio do sacrifício, um tema profundamente bíblico-eucarístico. O aposto que expressa os destinatários do pedido, justifica-o dentro da perspectiva pascal-batismal, em vista da ação ritual do escrutínio que foi celebrado imediatamente antes da apresentação das oferendas. De fato, o período de catecumenato, que está se aproximando do seu ponto de chegada/partida, é o tempo no qual os candidatos ao batismo, agora eleitos, são imbuídos dos ensinamentos da vida cristão (fidei christianae eruditionibus imbuisti). Na proximidade entre o tema da escuta da palavra da fé e a purificação, reconhece-se, imediatamente, dois versículos: Jo 15,3 [Vós já estais puros por causa da palavra que vos tenho falado] e Ef 5,26 [Para santificá-la, purificando-a com o banho da água, pela palavra]. O conceito de purificação pelo sacrifício é central na teologia da Carta aos Hebreus (9,13-14):
Pois se o sangue de carneiros e de touros e a cinza de uma vaca, com que se aspergem os impuros, santificam e purificam pelo menos os corpos, quanto mais o sangue de Cristo, que pelo Espírito eterno se ofereceu como vítima sem mácula a Deus, purificará a nossa consciência das obras mortas para o serviço do Deus vivo?
O autor da Carta ao Hebreus, certamente faz eco à doutrina joanina que “o sangue de Jesus Cristo, o Filho de Deus, nos purifica de todo pecado” (1Jo 1,7).
Os Padres do oriente e do ocidente são unânimes em sustentar a doutrina bíblica da purificação. Unindo as duas dimensões da Eucaristia, ceia e sacrifício, São João Crisóstomo insiste que o pão eucaristizado tendo a função de alimentar, também purifica o coração humano (cf. Homiliae in Matthaeum 82,5). No ocidente Santo Ambrósio (Sobre os sacramentos V,3,15) relaciona o sacrifício eucarístico com a purificação dos fiéis e Santo Agostinho (Comentário aos Salmos 103,1,15) coloca em evidiencia a ação de Deus em purificar os fiéis por meio da Eucaristia.
Tudo quanto dito até agora nos introduz no coração mesmo da teologia sacramental da memória e do memorial. A memória eucarística, do grego ἀνάμνησις (anamnese), que deriva de ἀναμιμνήσκω “recordar”, não significa lembrança, como ação do pensamento, mas uma força motora que tem a capacidade de transportar o “memorante” ao evento “memorado” e, contemporaneamente, reapresentar o passado memorado ao presente do memorante. O memorial, então, é a repetição mimética [do grego μίμησις derivado di μιμέομαι “imitare”] dos gestos e das palavras (rito – lei da iteração: “façam isto”) assemelhados (do latim similitudo) aos gestos e palavras do evento memorado, como única forma possível de efetuar a memória (“em memória de mim”). Portanto, sendo o rito eucarístico o memorial do sacrifício purificatório de Cristo no seu mistério pascal, ela não é outra coisa senão a operação eficaz do evento memorado.
A teologia sacramental dessa prece é em linha de continuidade com a tradição, ao expressar um pensamento constante da Igreja, desde os Padres Apostólicos até os teólogos da Idade Média e do Concílio de Trento, sobre a eficácia santificadora da Eucaristia. Não obstante, a teologia litúrgica convida a alargar a compreensão de Eucaristia. Ela é o memorial, o ato de dar graças (gratiarum actio), logo, apresentando essa doutrina, antes mesmo da prece eucarística, indica que a dimensão sacrificial pertence a todo o rito eucarístico. Isso é didaticamente pertinente, porque destaca que a fé e a penetração no mistério acontecem progressivamente. Exige-se tanto conhecimento do evento pascal (Liturgia da Palavra) quanto a participação ativa na sua atuação ritual (Liturgia Eucarística).
