A ALEGRIA QUE NASCE DA COMPAIXÃO

A ALEGRIA QUE NASCE DA COMPAIXÃO

 

Padre Sérgio da Silva*

 

A tonalidade do quadro litúrgico do caminho preparatório para a Páscoa do Senhor está expressa pelo evangelista Lucas na quaresma do Ano C. O IV domingo, conhecido como “Domingo Laetare”, é clássico por enaltecer o Pai misericordioso na dinâmica da acolhida alegre e amorosa do filho mais jovem que voltou arrependido à casa paterna. A tentativa do relato é enfatizar a importância da misericórdia de Deus no itinerário da conversão. 

A conhecida história do “pai misericordioso” é proposta como ícone do caminho da reconciliação e da redescoberta do perdão de Deus, cujas portas permanecem abertas quando os dois filhos voltam. O contexto de Lc 15 pede uma leitura da parábola em continuidade com as duas histórias anteriores: a ovelha perdida e encontrada pelo pastor (vv.4-7) e a moeda perdida e encontrada pela mulher (vv. 8-10). As três parábolas, compostas segundo um esquema paralelo, revelam o mistério do amor antecipado do Pai por aqueles que estão perdidos e nos dão uma chave de leitura da dinâmica misericordiosa do “reino de Deus”.

O processo de ida e volta do “filho pródigo”, a perda da sua dignidade e o regressar ao convívio familiar é paradigmático para a comunidade cristã: suscita nos catecúmenos e nos fiéis penitentes a esperança salvífica, próprias de um tempo preparatório para celebrar a vitória de Cristo sobre o pecado. O contexto da parábola pode ser sintetizado na motivação pedagógica de Jesus, que acolhe os pecadores e faz refeição com eles (cf. Lc 15, 2) em clima de festa. A compaixão e a misericórdia tornam-se, portanto, o centro de tal ensinamento, que se concluem na alegria da vida nova e da reconciliação entre o pai e o filho, ou seja, entre Jesus e os pecadores. 

A realidade do pecado está ligada ao mistério da liberdade do homem. A decisão inexplicável do filho mais novo de deixar a casa paterna e o fracasso total de sua aventura descrevem plasticamente a dinâmica do pecado, entendido como um erro existencial e incapacidade de projetar uma meta de vida. A parábola nos mostra narrativamente como o pecado é uma “remoção” deliberada da casa paterna, um desperdício de energias, uma condição de solidão e perda, uma escolha sem projeto, uma construção sem fundamento, marcando a vida por desilusões e tristezas. 

O filho fez o exame de consciência, tentou confessá-lo, mas foi impedido. O pai não se interessou pelo arrependimento do filho, não permitindo-o com que concluísse sua confissão, abraça-o com força e o impede de gestos penitenciais. O filho pensou em ser empregado, mas o Pai não permitiu. Dessa forma, a reconciliação do pai foi revelada a partir de alguns gestos concretos: o vestido, restituía a dignidade; o anel, simbolizava a realeza e o poder; a sandália nos pés, restabelecia a condição de filho e não de escravo. Entretanto, o maior sinal foi a festa pela vida restituída do filho: “trazei o novilho cevado e matai-o; comamos e festejemos, pois, este meu filho estava morto e tornou a viver, estava perdido e foi reencontrado”. O retorno do filho foi apresentado não apenas como arrependimento e reconciliação, mas como uma verdadeira ressurreição e recriação, uma passagem da morte para a vida. 

Nesta mesma direção, o “Domingo   Laetare” serve como pré-anúncio da alegria pascal para intensificar e iluminar o cristão no itinerário da conversão. Isso pode-se perceber não somente no Evangelho (Lc 15, 1-3.11-32), mas nas leituras (Js 5, 9a. 10-12; Sl 33 (34), 2-3. 4-5. 6-7; 2Cor 5, 17-21), nas antífonas, nas orações do dia e na cor rósea indicada para esse domingo. A segunda leitura, por exemplo, sintetiza bem essa máxima quando São Paulo escreve aos Coríntios: “Com efeito, em Cristo, Deus reconciliou o mundo consigo, não imputando aos homens as suas faltas e colocando em nós a palavra da reconciliação. [...] Deixai-vos reconciliar com Deus” (2Cor 5,19-20). Na oração do dia, temos: “Ó Deus, que por vosso Filho realizais de modo admirável a reconciliação do gênero humano, concedei ao povo cristão correr ao encontro das festas que se aproximam, cheio de fervor e exultando de fé”. A evidência que a liturgia coloca sobre a alegria da reconciliação perpassa toda a ação simbólica do Mistério Pascal celebrado em meio à quaresma, tempo propício de conversão e da renovação da esperança na vitória de Cristo. Dessa maneira, a quaresma não deve possuir o resíduo arqueológico de práticas ascéticas de outros tempos e, para isso, ela deve ser marcada por uma experiência mais viva da participação no mistério pascal de Cristo: “participamos dos seus sofrimentos para participarmos também da sua glória” (Rm 8,17).

A alegria celebrada na liturgia do IV domingo da quaresma, pode ser iluminada pela profundidade desta reflexão pela Exortação Apostólica “Evangelli Gaudium” do Papa Francisco: 

“Há cristãos que parecem ter escolhido viver uma Quaresma sem Páscoa. Reconheço, porém, que a alegria não se vive da mesma maneira em todas as etapas e circunstâncias da vida, por vezes muito duras. Adapta-se e transforma-se, mas sempre permanece pelo menos com um feixe de luz que nasce da certeza pessoal de, não obstante o contrário, sermos infinitamente amados. Compreendo as pessoas que se vergam à tristeza por causa das graves dificuldades que têm de suportar, mas, aos poucos, é preciso permitir que a alegria da fé comece a despertar, como uma secreta, mas firme confiança, mesmo no meio das piores angústias” (EG 6). 

Mesmo que estejamos em um contexto de Guerra entre povos, visualiza-se a esperança de Cristo na vida dos povos feridos. Nele somos vitoriosos! A Igreja é chamada a unir-se concretamente na acolhida dos povos sofredores neste momento crucial mostrando a face misericordiosa do Pai. Muitos precisam recomeçar a vida em terras estrangeiras, feridos em sua dignidade e perdidos, precisando recomeçar. Viver a dinâmica da acolhida e da misericórdia, nunca se tornou tão concreta como neste tempo. Portanto, o fruto da liturgia do IV domingo da quaresma deve alimentar a alegria que nasce da compaixão como as pessoas e com os povos sofredores que esperam ser abraçados no momento mais difícil de suas vidas, como uma centelha de luz na escuridão dos conflitos. 

 

  

* Presbítero da Diocese de Joinville, mestre em Teologia Dogmática Sacramental pelo Pontifício Ateneu S. Anselmo de Roma. 

 

 
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