“REMÉDIO CONTRA O PECADO” - UMA INTERPRETAÇÃO DA COLETA DO III DOMINGO DA QUARESMA À LUZ DOS ESCRUTÍNIOS DOS CATECÚMENOS

“REMÉDIO CONTRA O PECADO” - UMA INTERPRETAÇÃO DA COLETA DO III DOMINGO DA QUARESMA À LUZ DOS ESCRUTÍNIOS DOS CATECÚMENOS

 

Pe. João Paulo Veloso*

 

  Entre os elementos mais preciosos da liturgia romana, certamente a oração coleta ocupa um lugar de destaque. De fato, esta pequena pérola de oração, fruto tanto da sobriedade romana quanto da passionalidade germânica, indica para qual estado de espírito determinada celebração pretende conduzir os fiéis. Pode-se dizer, sem sombras de dúvidas, que a oração coleta é chave hermenêutica para interpretar toda a celebração litúrgica, pois ela se apresenta justamente como a moldura desta obra de arte que é a sinaxe eucarística.

   A reforma litúrgica realizada após o Concílio Vaticano II procurou, a partir do emanado na Sacrosanctum concilium, recuperar venerandos elementos da tradição eclesial, tanto do Ocidente quanto do Oriente. A eucologia eucarística, portanto, foi profundamente ampliada, para a qual se resgataram orações dos antigos sacramentários romanos que, a partir do início do segundo milênio, pouco a pouco foram deixando de ser usadas. 

Entre estes tesouros reencontrados, tem-se a oração coleta do III Domingo da Quaresma, extraída diretamente do sacramentário Gelasianum Vetus (GeV), um manuscrito do século VIII dado aos Estados Pontifícios pela rainha Cristina da Suécia, no século XVI. No entanto, seu conteúdo remonta seguramente ao século VI. Este sacramentário apresenta uma liturgia realizada nos tituli romani, ou seja, as paróquias romanas, sendo um livro de uso predominantemente presbiteral, apesar de também apresentar ritos destinados à celebração episcopal.

A oração em questão é a seguinte:

“Ó Deus, fonte de toda misericórdia e de toda bondade, vós nos indicastes o jejum, a esmola e a oração comoremédio contra o pecado. Acolhei esta confissão da nossa fraqueza para que, humilhados pela consciência de nossas faltas, sejamos confortados pela vossa misericórdia”. 

 

Na terceira edição típica do Missal Romano (MR), de 2002/2008, é assim apresentada: 

Deus, ómnium misericordiárum et totíus bonitátis auctor, qui peccatórum remédia in ieiúniis, oratiónibus et eleemósynis demonstrásti, hanc humilitátis nostræ confessiónem propítius intuére, ut, qui inclinámur consciéntia nostra, tua semper misericórdia sublevémur”.

 

No GeV (n. 249), esta oração é a coleta do sábado da IV semana da Quaresma:

Deus, omnium misericordiarum ac totius bonitatis auctor, qui peccatorum remidia ieiuniis orationibus et aelymosinis demonstrasti: respice propitius in hanc humilitatis nostrae confessionem, ut qui inclinamur consciencia nostra, tua semper misericordia eregamur”.

 

Percebe-se que a oração na fonte original foi conservada em sua quase totalidade, chegando ao século XX com a alteração de apenas dois verbos (respice/intuereeregamur/sublevemur, que apresentam o mesmo sentido) e com poucas palavras corrigidas para um latim mais polido.

A tradução literal apresenta uma leve, porém essencial, diferença da tradução oficial:

“Ó Deus, autor de todas as misericórdias e de todas as bondades, que apresentaste nos jejuns, nas orações e nas esmolas os remédios dos pecados, acolhei com bondade esta confissão da nossa fraqueza, obrigados pela nossa consciência, para que sejamos sempre confortados pela vossa misericórdia”.

Vê-se que a oração, em sua primeira parte, apresenta todos os substantivos no plural, enquanto optou-se pelo singular na tradução oficial. Isso poderia passar apenas como uma escolha de estilo, para deixar o texto em português mais fluido e agradável; no entanto, decorre dessa escolha um problema que altera o sentido original da oração, sobretudo no que diz respeito à diferença entre “remédio contra o pecado” e “remédios dos pecados”.

O contexto do substantivo remedium na eucologia quaresmal

No GeV, o termo remedium, nas suas declinações no plural (remedia/remidia remediis), significando “remédios”, aparece em outras três orações quaresmais [1]. Em todas denota justamente as obras de penitência da quaresma, como o jejum, a esmola e a oração, que têm como resultado o perdão dos pecados e o acesso à vida eterna. Aqui, portanto, o termo “remédios” está intimamente ligado às ações oriundas das práticas quaresmais.

Já quando o termo aparece, dentro da eucologia quaresmal, em suas declinações no singular (remedium, remedio, remedii), significando “remédio”, possui sempre conotação eucarística [2]. O “Remédio” (com “r” maiúsculo) que cura todas as enfermidades é a própria Eucaristia, o Corpo e o Sangue de Cristo comungados. Esta referência de “remédio” (no singular) ao contexto eucarístico, nas orações sobre as ofertas e pós-comunhão, também está presente no MR [3].

Neste ponto pode-se perguntar o porquê desta coleta, usada no século VIII como uma oração de um sábado quaresmal, foi justamente a escolhida para ser a moldura, a chave hermenêutica do atual III Domingo da Quaresma. 

Uma hipótese bastante válida é extraída da rubrica que vem no formulário da edição típica do MR, logo acima desta coleta: “Hac dominica celebratur primum scrutinium præparatorium ad baptismum pro catechumenis”. Em tradução literal: “Neste domingo celebra-se para os catecúmenos o primeiro escrutínio de preparação para o batismo”. Assim, deve-se averiguar o formulário dos escrutínios, contidos no Ritual da Iniciação Cristã de Adultos, para se poder fazer a correlação entre a antiga coleta, o III Domingo da Quaresma e a questão da expressão “remédios dos pecados”.

O contexto celebrativo: escrutínios

Desde uma antiquíssima tradição, atestada não somente pelos grandes sacramentários do primeiro milênio, mas também por fontes catequéticas e homiléticas ainda mais antigas [4], o tempo quaresmal era dedicado à preparação para o batismo dos catecúmenos. Este rito compreendia, ao longo dos domingos da Quaresma, a celebração dos escrutínios, que consistia em orações deprecatórias e epicléticas sobre aqueles que receberiam os sacramentos da iniciação cristã na vigília pascal.

O Concílio Vaticano II, tendo ordenado também a restauração do catecumenato no rito romano [5], obteve como fruto, em 1972, a publicação do Ritual da Iniciação Cristã de Adultos (RICA). Nos números 160-165 apresentam-se os formulários e rubricas a serem utilizados na celebração do Primeiro Escrutínio, justamente no III Domingo da Quaresma. 

Observe-se o texto da oração de exorcismo, realizada sobre os catecúmenos, ajoelhados [6]:

“Ó Deus, tendo-nos mandado vosso Filho como Salvador, concedei que estes catecúmenos, sedentos da água viva como a Samaritana, desejam a água viva e convertidos pela palavra do Senhor, reconheçam os grilhões de seus pecados e fraquezas. Não permitais que, por uma vã confiança em si mesmos, sejam iludidos pelo poder do inimigo, mas libertai-os do espírito da mentira, para que, reconhecendo a sua própria maldade, possam purificar-se interiormente e encetar o caminho da salvação”.

Trata-se de uma oração deprecatória realizada de mãos juntas, na qual se faz menção ao reconhecimento da própria fraqueza que os catecúmenos devem ser instados a realizar. Esta oração está plenamente de acordo com a segunda parte coleta do III Domingo da Quaresma, ampliando-a e desenvolvendo-a. A menção à mulher samaritana é, também, o eco do Evangelho (João 4) que necessariamente deve ser proclamado quando houver escrutínio, independente do ciclo litúrgico corrente.

Após o exorcismo, o padre ou diácono impõe as mãos sobre os catecúmenos e profere a seguinte oração epiclética, que retoma o tema do pecado como ferida: 

“Senhor Jesus, sois a fonte pela qual suspiram estes catecúmenos e o mestre a quem procuram. Diante de vós, único santo, não ousam proclamar-se inocentes. Abrem, confiantes, o seu coração, confessam as suas faltas e descobrem suas chagas ocultas. No vosso amor, libertai-os das suas fraquezas, restabelecei os enfermos, dai de beber aos sedentos, concedei-lhes a paz. Pelo poder do vosso nome, que invocamos com fé, vinde e salvai. Subjugai o espírito maligno, vencido por vossa ressurreição. No Espírito Santo, mostrai a vossos eleitos o caminho, a fim de que, conduzidos ao Pai, possam adorá-lo em espírito e verdade”.

Esta oração epiclética amplia a primeira parte da coleta do III Domingo da Quaresma quando associa a ação divina à cura das enfermidades, que, neste contexto, são causadas pelo pecado. Os remédios apresentados na coleta (oração, jejum e esmola) agora fazem o seu efeito pela ação do Espírito Santo, provocando o resultado da saúde completa do catecúmeno.

Além disso, a penúltima das orações que se fazem pelos catecúmenos, antes do exorcismo e da invocação pneumática, coloca toda a comunidade neste mesmo espírito de purificação através dos remédios quaresmais: “Para que todos nós, preparando-nos para as festas pascais, possamos corrigir nossos erros, elevar os nossos corações e praticar a caridade, roguemos ao Senhor”.

O RICA prevê que, onde for possível, mantenha-se a antiga tradição na qual os catecúmenos, após os escrutínios, retirem-se do ambiente litúrgico, permanecendo apenas a comunidade dos fiéis já batizados para a oração universal e a liturgia eucarística. 

Analisando em conjunto tanto a coleta quanto o rito dos escrutínios, chega-se à conclusão que os catecúmenos, não podendo ainda receber o “Remédio” da Eucaristia, iniciam a sua cura interior causada pela enfermidade do mal através dos “remédios dos pecados”, ou seja, as obras penitenciais da quaresma. Destes santos remédios também haure benefícios toda a comunidade dos fiéis, que acompanham os catecúmenos com suas preces e testemunho. 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Notas:

[1] I Domingo da Quaresma (n.105): “Omnipotens sempiterne deus, qui nobis in obseruatione ieiunii et aelimosinarum semine posuisti nostrorum remedia peccatorum, concide nos opere mentis et corporis semper tibi esse deuotos”.

Sábado da I semana da Quaresma (n. 129): “Deus, qui nos gloriosis remediis in terris adhuc positus iam caelestium rerum facis esse consortes, tu, quaesumus, in ista qua uiuimus nos uita guberna, ut ad illam in qua ipse es luce perducas”.

Oração sobre o povo no sábado da V semana da Quaresma (n. 282): “Uisita, quaesumus, domine, plebem tuam et corda sacris decata mysteriis pietate tuere peruigili, ut remedia salutis aeternae, quae te miserante percipit, te protegente custodiat”.

[2] Pós-comunhão da terça-feira da I semana da Quaresma (n. 117): “Sumpsimus, domine, caelebritatis annuae uotiva sacramenta; praesta, quaesumus, ut temporalis uitae nobis remedio praeueniant et aeterna”.

Pós-comunhão do sábado da III semana da Quaresma (n. 223): “Quod ore sumpsimus, domine, mente capiamus et de munere temporali fiat nobis remedium sempiternum”.

Sobre as ofertas do IV domingo da Quaresma (n. 226): “Remedii sempiterni munera, domine, laetantes offerimus suppliciter exorantes, ut eadem nos et digni uenerari et pro sa]uandis congruenter exhibere perficias”.

Pós-comunhão da terça-feira da IV semana da Quaresma (n. 237): “Caelestia dona capientibus, quesumus, domine, non ad iudicium peruenire paciaris, quod fidelibus tuis ad remedium prouidisti”.

Sobre as ofertas do sábado da IV semana da Quaresma (n. 251): “Offerimus tibi, domine, munera quae dedisti, ut et creationis tuae circa mortalitatem nostram testificentur auxilium et remedium inmortalitatis operentur”.

[3] Pós-comunhão da segunda-feira da I semana da Quaresma: “Sentiamus, Domine, quaesumus, tui perceptione sacramenti, subsidium mentis et corporis, ut, in utroque salvati, de caelestis remedii plenitudine gloriemur”.

Sobre as ofertas da quarta-feira da I semana da Quaresma: Offerimus tibi, Domine, quae dicanda tuo nomini tu dedisti, ut, sicut eadem nobis efficis sacramentum, ita fieri tribuas remedium sempiternum”.

Pós-comunhão da quinta-feira da I semana da Quaresma: Quaesumus, Domine Deus noster, ut sacrosancta mysteria, quae pro reparationis nostrae munimine contulisti, et praesens nobis remedium esse facias et futurum”.

Sobre as ofertas do IV domingo da Quaresma: Remedii sempiterni munera, Domine, laetantes offerimus, suppliciter exorantes, ut eadem nos et fideliter venerari, et pro salute mundi congruenter exhibere perficias”.

Sobre as ofertas da terça-feira da IV semana da Quaresma: Offerimus tibi, Domine, munera quae dedisti, ut et creationis tuae circa mortalitatem nostram testificentur auxilium, et remedium nobis immortalitatis operentur”.

Pós-comunhão da quarta-feira da IV semana da Quaresma: Caelestia dona capientibus, quaesumus, Domine, non ad iudicium provenire patiaris, quae fidelibus tuis ad remedium providisti”.

Pós-comunhão da quinta-feira da IV semana da Quaresma: Purificent nos, quaesumus, Domine, sacramenta quae sumpsimus, et famulos tuos ab omni culpa liberos esse concede, ut, qui conscientiae reatu constringuntur, caelestis remedii plenitudine glorientur”.

[4] Como, por exemplo, a Peregrinação de Egéria (século IV).

[5] Sacrosanctum concilium 64-65.

[6] Na edição típica, este exorcismo se encontra no número 164 do RICA. No entanto, a edição brasileira apresenta neste número um outro exorcismo. Transcreveu-se, aqui, a oração que corresponde ao original em latim, ou seja, a do número 379 da edição brasileira, onde aparece como segunda opção para o exorcismo dos catecúmenos. O mesmo fenômeno se aplica à oração epiclética e ao formulário da oração dos fiéis, mencionados adiante.

 

 

Fontes:

Liber sacramentorum romanae aeclesiae ordinis anni circuli (Cod. Vat. Reg. lat. 316/Paris Bibl. Nat. 7193, 41/56). Sacramentarium Gelasianum, ed. L. Cunibert Mohlberg, Herder, Roma 1981.

Missale Romanum ex decreto Sacrosancti Oecumenici Concilii Vaticani II instauratum auctoritate Pauli PP. VI promulgatum Ioannis Pauli PP. II cura recognitum, Editio typica tertia, Typis Vaticanis, Città del Vaticano 2008.

Rituale Romanum ex decreto Sacrosancti Oecumenici Concilii Vaticani II instauratum auctoritate Pauli PP. VI promulgatum. Ordo Iniationis Christianae Adultorum, Editio Typica, Typis Polyglottis Vaticanis 1972.

Sacrosanctum Concilium Oecumenicum Vaticanum II, «Constitutio de Sacra Liturgia Sacrosanctum concilium (4 decembris 1963)», Acta Apostolicae Sedis. Commentarium officiale 56 (1964) 97-138. 

 

 

*Presbítero da arquidiocese de Palmas-TO e mestre em Liturgia pelo Pontifício Instituto Litúrgico de Roma. E-mail:contato@padreveloso.com - Instagram: @padreveloso

 

 

 
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